domingo, julho 11, 2010

O Ensino Religioso nas Escolas

Muito se tem dito sobre a questão do Ensino Religioso nas Escolas, alguns até sem o conhecimento elementar da Nova Lei de Diretrizes e bases da Educação em seu artigo 33 - Lei n° 9.394 de 20 de dezembro de 1996 com redação dada pela Lei n° 9475, de 22 de julho de 1997 que legisla sobre este assunto do seguinte modo:

Art.33° - O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
§ 1° - Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
§ 2° - Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição do ensino religioso.

Esta Lei é bastante ampla e ambígua, deixando várias lacunas a serem preenchidas pelos Conselhos Estaduais de Ensino conforme realidade e vivências regionais, ficando para as Secretarias Estaduais de Educação e os Conselhos de Educação sua regulamentação. Além disto existe a possibilidade do Projeto Político Pedagógico de cada unidade escolar adaptar tal legislação à sua realidade vivencial.

A questão central no Ensino Religioso nas Escolas não é concordar ou não sobre sua existência nas Unidades Escolares, mas como serão ministradas tais aulas. Passo a fazer algumas considerações que julgo importantes na elaboração de Leis Regulamentares sobre o Ensino Religioso nas Escolas Públicas, bem como para a elaboração de Um Projeto Político Pedagógico que possa incluir tal procedimento:

I. Devemos Considerar a Pluralidade Religiosa Existente em Nossa Sociedade

Vivemos a cultura de uma sociedade judaica-cristã, fruto de uma triste colonização. Em 31 de outubro de 1517 Martin Lutero fixou suas 95 teses na porta do palácio de Wittenberg, e em 22 de abril de 1500, dezessete anos antes, Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil, portanto o tipo de catolicismo ao qual fomos iniciados era de características medievais, ou seja, indulgente, inquisitório e intolerante (não necessariamente nesta ordem). O Brasil não pode ser considerado como um país cristão tão somente pela imposição de seus primeiros, ou por seus atuais colonizadores (leia quem entenda). Na constituição federal são atribuídos os exercícios sacerdotais à apenas três categorias religiosas: o Padre (sacerdote católico), o Rabino (sacerdote judaico) e o Pastor Protestante (sacerdote de confissão evangélica). Ficam de fora as religiões não cristãs (Islamismo, Budismos etc.); Religiões cristãs que estão fora da classificação de católicos e protestantes (Kardecismo, Umbandismo etc.). O ensino religioso nas escolas não é definido, segundo a lei federal, 9394 LDB, se é ou não cristão, e por isso mesmo precisamos abranger o maior número possível de expressões religiosas em nossa sociedade, para garantir o direito de livre expressão de culto, sob o risco de ignorarmos tais manifestações culturais e tornar-nos este dispositivo de lei como proselitismo e intolerância religiosa, o que contraria o espírito da própria lei. Reduzir o ensino religioso às próprias convicções religiosas, à historicidade cultural ou familiar é crime de discriminação religiosa.

II. Devemos Considerar A Formação Do Profissional De Ensino Religioso

Qualquer lei que venha regulamentar a habilitação e admissão dos professores de ensino religioso precisa levar em consideração pelo menos três itens:

a) A Qualificação Do Professor De Ensino Religioso - As exigências legais, segundo a LDB supõe que o profissional de ensino seja portador de um diploma de nível superior. Mas como aplicar isto, se os cursos de teologia não são reconhecidos pelo Ministério da Educação e Cultura? Ou seja, os cursos teológicos são considerados como Seminários Maior, tendo amparado no decreto-lei n° 1.051 de 21.10.1969. Além da questão do reconhecimento dos cursos teológicos, precisaria haver uma reformulação curricular, onde fossem oferecidas as disciplinas de Licenciatura Plena para o exercício do magistério, já que os cursos teológicos, em sua grande maioria, formam bacharéis em teologia;
b) A Admissão Do Professor De Ensino Religioso - A realização de concurso público precisa ser bem avaliada. O sistema de coronelismo, apadrinhamentos e nepotismo ainda são fartos na prática "endêmica" brasileira. A seleção do professor de ensino religioso precisa ser criteriosa e através de concurso, sob a pena de cairmos na prática da catequese;
c) A Remuneração Do Professor De Ensino Religioso- Inicialmente a lei 9394, em seu conteúdo e espírito, indicava caminhos para que o ensino religioso fosse ministrado por voluntários, por se tratar de uma disciplina não obrigatória e com matrícula facultativa, mas "quiseram os deuses" que em lei 9475 de 22/07/97 houvesse remuneração ao professor de ensino religioso. Fica a sugestão que o professor de ensino religioso seja enquadrado nas funções e remunerações, conforme disposto em leis estaduais para os profissionais de ensino.

III. Devemos Considerar A Escolha Do Conteúdo Programático

As aulas de ensino religioso não podem ser aulas de catequese ou de classe de catecúmenos. As instituições religiosas têm seus programas de Educação religiosa que visam suas doutrinas aos seus fiéis, portanto a prática do ensino religioso nas escolas precisa de uma definição bem clara de seus objetivos, antes mesmo da elaboração de seu currículo. A elaboração de um currículo depende em muito da realidade vivencial (contexto) em que está sendo elaborado. Quando pensamos em ensino religioso podemos seguir a linha da história das religiões, das doutrinas religiosas, da teologia cristã, da ética e cidadania, enfim, existe um universo de abordagens que precisará passar por um crivo bem idôneo em diversos níveis.

Concluindo, tornar-se necessário; lembrar que historicamente o ofício de "professor" surgiu nos mosteiros na Idade Média a serviço da burguesia através do ensino religioso. Portanto fica para nossa reflexão o seguinte:

a) A quem interessa o ensino religioso nas escolas?
b) Este tipo de ensino seria um progresso ou um retrocesso do processo de laicização do estado (separação do Estado da Igreja)?

"Concluindo Jesus de proferir estas palavras (Sermão do Monte), as multidões se admiraram de sua doutrina, porque as ENSINAVA, COMO QUEM TEM AUTORIDADE, E NÃO COMO OS ESCRIBAS". Mateus 7:28 e 29

Que Deus nos abençoe e ajude!!!

Sugestões Bibliográficas:
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. Ed. Paulinas.

BOFF, Leonardo. Igreja, carisma e poder. Ed. Vozes

© Prof. Vanderlei de Barros Rosas - Professor de Filosofia e Teologia. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro; Bacharel em teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil; Pós-graduado em Missiologia pelo Centro Evangélico de Missões; Pós-graduado em educação religiosa pelo Instituto Batista de Educação religiosa.

segunda-feira, julho 05, 2010

Filosofia Clínica

A Filosofia Clínica é uma metodologia que aplica nas clínicas o ponto de vista filosófico para amenizar as dores da alma humana. Ela segue os parâmetros da Filosofia Prática, ou Filosofia do Aconselhamento, nascida na Alemanha em 1981. No Brasil, a versão desta prática alemã foi criada no final da década de 80, por Lúcio Packter, psicanalista e filósofo, no Rio Grande do Sul.

Ela pode ser aplicada por todos os graduados, mestres e doutores em Filosofia nas Faculdades consideradas oficiais pelo Ministério da Educação. Profissionais de outros campos podem cursar uma especialização nesta área, porém sem o direito de exercer a parte clínica.

A Filosofia Clínica difere da que lhe inspirou mais nos métodos utilizados do que na esfera teórica. Ela está focada na necessidade de diagnóstico e de auxílio terapêutico aos problemas vitais que proliferam em hospitais, clínicas, escolas, ambulatórios, entre outros. Ao contrário da Psiquiatria e da Psicanálise, esta esfera filosófica não trabalha com a idéia de normalidade e de patologia. Ela centra sua atenção no histórico de vida do paciente, abordando a lógica formal – conceitos, juízos, raciocínio, leis do pensamento -, e a teoria do conhecimento, ou seja, a epistemologia.

Os profissionais desta área se baseiam nos autores e textos estudados na Academia, principalmente na Lógica, na Epistemologia, na Fenomenologia, na Historicidade, no Estruturalismo e na Analítica da Linguagem, entre outros ângulos pesquisados no percurso acadêmico. Todo este embasamento teórico não impede a Filosofia Clínica de receber críticas agudas da Psiquiatria – ela lhe cobra uma visão que também aborde as perturbações orgânicas que subjazem nos distúrbios psíquicos – e da Psicanálise – esta não acredita na eficiência da racionalização de problemas emocionais.

A Filosofia Clínica procura abranger os problemas que perturbam os mecanismos do pensamento humano, através do recurso à psicoterapia individual, na qual procura-se compreender o sujeito em sua individualidade. Ela também é aplicada naqueles que buscam o autoconhecimento. Neste sentido, Lúcio Packter propôs uma terapêutica que parte do saber filosófico reunido ao longo do tempo. Assim, ele viajou por vários países da Europa e pelos Estados Unidos, criando no retorno ao Brasil um método próprio, o qual ele batizou de Filosofia Clínica.

A metodologia utilizada pelos adeptos desta vertente se baseia essencialmente na corrente fenomenológico-existencial, bem como no empirismo da Inglaterra, em Hume, Locke e Berkeley, entre outras metodologias. O Instituto Packter nasceu em 1994, em Porto Alegre, e logo se tornou centro de referência da Filosofia Clínica para profissionais de todo o país.

Hoje os filósofos clínicos são também consultores empresariais, educacionais, terapeutas de grupo, bem como de comunidades, atendem instituições, além das terapias individuais e outras áreas afins. Nos dias atuais, em que situações de estresse muitas vezes degeneram em depressões, fobias e outras perturbações emocionais, o campo de trabalho destes filósofos tende a se ampliar. Eles tentam restabelecer a harmonia da alma humana, e pode-se dizer que atuam igualmente no resgate dos valores da Humanidade.

Assim, no atendimento terapêutico, o profissional procura se despir de todos os preconceitos e dos juízos anteriormente estabelecidos, bem como dos modelos de normalidade e de anormalidade. Além disso, deve-se tomar o cuidado de estabelecer com o paciente uma sintonia positiva, para que se possa edificar o entendimento necessário para a eficiência terapêutica.

infoescola.com

segunda-feira, maio 17, 2010

Sobre Educação Autor: Arthur Schopenhauer


Tradução: André Díspore Cancian
Fonte: Parerga e Paralipomena, pp. 627-33

§ 372

Devido à natureza de nosso intelecto, ideias gerais devem surgir por meio da abstração a partir de observações particulares; estas devem, portanto, existir antes das primeiras. Se isso de fato ocorre, como no caso do homem cujo aprendizado baseia-se exclusivamente em sua própria experiência — que não possui professor nem livros —, o indivíduo sabe muito bem quais de suas observações particulares pertencem a, e são representadas por, cada uma de suas ideias gerais. Possui uma perfeita familiaridade com ambos os lados de sua experiência e, assim, lida corretamente com tudo o que se apresenta diante dele. Esse pode ser denominado o método natural de educação.

Por outro lado, o método artificial consiste em ouvir o que os demais dizem, em aprender e em ler, de modo a abarrotar a mente com ideias gerais antes de possuir qualquer familiaridade aprofundada com o mundo em si. Então se espera que posteriormente a experiência forneça as observações particulares relativas a essas ideias gerais; mas, até que isso ocorra, as ideias gerais são aplicadas erroneamente, os homens e as coisas são julgados sob uma ótica falsa, vistos sob uma ótica equivocada, e são abordados de maneira incorreta. Essa educação perverte a mente. Isso explica por que, em nossa juventude, após muito aprendizado e leitura, ingressamos no mundo em parte ignorantes sobre as coisas e em parte equivocados a seu respeito; assim, num instante nosso comportamento é guiado por uma ansiedade nervosa, num outro por uma confiança infundada. A razão disso é o fato de nossas mentes estarem repletas de ideias gerais que tentamos aplicar, mas quase nunca conseguimos. Esse é o resultado de agirmos em direta oposição ao desenvolvimento natural da mente, obtendo as ideias gerais primeiro e as observações particulares depois: colocamos a carruagem antes dos cavalos. Em vez de desenvolver a capacidade de discernimento da própria criança, ensinando-a a julgar e a pensar por si própria, o professor devota todas as suas forças a entulhar sua mente com ideias prontas de outros indivíduos. Nessa situação, essas visões equivocadas sobre a vida, que resultam da aplicação incorreta das ideias gerais, terão de ser posteriormente corrigidas por longos anos de experiência, e é muito raro que o sejam por completo. Essa é a razão pela qual tão poucos eruditos são dotados de bom senso, algo que é muito comum encontrarmos em indivíduos que não receberam qualquer instrução.

§ 373

Familiarizar-se com o mundo pode ser definido como o objetivo de toda educação; segue-se que devemos ter um cuidado especial com o início desse processo, para assim adquirirmos o conhecimento em sua ordem correta. Como demonstrei, isso significa principalmente que as observações particulares de cada coisa devem vir antes das ideias gerais a seu respeito; além disso, que ideias estreitas e limitadas virão antes das mais abrangentes; e também que todo o sistema de educação seguirá os passos que as próprias ideias precisam dar no curso de sua formação. Contudo, assim que se remove algum elemento dessa sequência, o resultado são ideias gerais deficientes e, a partir dessas, ideias gerais falsas; por fim, surge uma visão de mundo distorcida que é peculiar ao indivíduo — uma visão que quase todos abraçam por algum tempo, e a maioria dos homens por toda a vida. Todos os que voltarem seus olhares às suas próprias mentes perceberão que foi apenas após atingir uma idade bastante madura, e às vezes quando menos esperavam, que conseguiram alcançar uma compreensão clara de muitos assuntos que, afinal, não eram tão difíceis ou complicados. Até então, havia pontos de seu conhecimento que ainda eram obscuros devido às aulas que foram omitidas na fase inicial de sua educação, seja qual fosse seu tipo — artificial, por meio de professores, ou do tipo natural, baseado na experiência pessoal.

Assim, deveríamos tentar entender a sequência estritamente natural do conhecimento, para que então façamos a educação acompanhá-la metodicamente, e assim as crianças tornem-se familiarizadas com a marcha do mundo, sem ter suas mentes abarrotadas de ideias equivocadas, que muitas vezes jamais conseguirão abandonar. Se esse procedimento fosse adotado, deveríamos ter um cuidado especial em evitar que crianças utilizassem palavras que não compreendem claramente. Mesmo crianças têm frequentemente a tendência fatal de se satisfazer com palavras em vez de tentar entender as coisas — um desejo de decorar frases capazes de tirá-las de dificuldades quando necessário. Tal tendência ainda permanece depois que crescem, e essa é a razão pela qual o conhecimento de muitos eruditos é mera verborragia. Entretanto, o empenho essencial deve ser para que as observações particulares venham antes das ideias gerais, e nunca vice versa, como é o caso normal e infelizmente; como se uma criança viesse ao mundo a partir dos pés, ou um verso fosse escrito a partir da rima! O método corrente consiste em enxertar ideias e opiniões — que são, no estrito senso da palavra, preconceitos — na mente da criança, enquanto esta ainda possui um repertório muito limitado de observações particulares, e ela então aplica esse aparato de ideias-prontas às observações particulares e à experiência. Em vez disso, as ideias gerais e os julgamentos deveriam ter se cristalizado a partir das observações particulares e da experiência. Ao ver o mundo por si próprio, o indivíduo tem uma percepção rica e variada que não pode, naturalmente, competir com a brevidade e rapidez do método que emprega ideias abstratas para finalizar o assunto rapidamente por meio de generalizações. Será necessário um longo tempo para corrigir essas ideias preconcebidas, uma tarefa que talvez nunca seja concluída; pois sempre que algum aspecto da experiência contradiz essas noções preconcebidas, as evidências são rejeitadas de antemão como unilaterais, ou são simplesmente negadas; os homens fecham seus olhos às evidências apenas para que seus preconceitos permaneçam intactos. Desse modo, muitos homens carregam um fardo de equívocos ao longo de suas vidas inteiras — muletas, caprichos, fantasias, preconceitos, os quais por fim se tornam ideias fixas. O fato é que o indivíduo nunca tentou elaborar suas ideias fundamentais por si mesmo a partir de sua própria experiência de vida, de seu próprio modo de ver o mundo, pois recebeu todas as suas ideias já prontas de terceiros; e é isso o que torna esse indivíduo — e tantos outros! — tão raso e insípido. Em vez disso, deveríamos cuidar para que as crianças fossem educadas dentro de parâmetros naturais. Só devemos introduzir conceitos nas mentes das crianças por meio da observação, ou ao menos verificá-los dessa maneira. Como resultado, a criança assimilaria poucos conceitos, mas estes seriam bem fundamentados e precisos. Aprenderia então a medir as coisas não por critérios alheios, mas pelos próprios; e assim se esquivaria de um milhar de preconceitos e caprichos, os quais não precisarão ser posteriormente erradicados pelas valiosas lições da escola da vida. Desse modo, sua mente estaria desde sempre habituada a uma visão clara e a um conhecimento profundo; empregaria seu próprio julgamento e teria uma visão imparcial dos fatos.

Crianças em geral não devem entrar em contato com todos os detalhes da vida a partir da cópia antes de conhecê-los a partir do original. Assim, em vez de nos apressarmos em colocar livros em suas mãos, façamos com que se familiarizem, passo a passo, com as coisas — com as verdadeiras circunstâncias da vida humana. Acima de tudo, deveríamos nos esforçar para apresentá-las a uma visão clara da vida real, e educá-las para que sempre derivem seus conceitos diretamente do mundo real. Devem formar tais conceitos de acordo com a realidade, e não coletá-los de algum outro local — livros, contos de fada ou opiniões alheias — para então empregá-los diretamente e já prontos à vida real. Pois, nessa situação, suas mentes estarão repletas de quimeras, e assim verão as coisas sob uma luz falsa, ou tentarão inutilmente remodelar o mundo para que se adéque às suas visões, trilhando caminhos equivocados não apenas na teoria, mas também na prática. É incrível a quantidade de prejuízo que se causa por semear quimeras em mentes ainda jovens, e pelos preconceitos decorrentes, pois a educação que recebemos do mundo e da vida real precisará então ser empregada sobretudo para erradicar tais preconceitos. A resposta, dada por Antístenes segundo Diógenes Laércio, também consiste nisto (VI. 7): Interrogatus quaenam esset disciplina maxime necessaria, Mala, inquit, dediscere. [quando interrogado sobre qual era a disciplina mais necessária, respondeu: desaprender o mau.]

§ 374

Como erros instilados precocemente em geral ficam gravados profundamente, e como a capacidade de julgamento é a última faculdade intelectual a amadurecer, nenhuma criança com menos de quinze anos deve ser instruída em teorias e doutrinas passíveis de grandes erros. Devem, portanto, ser mantidas à distância de toda filosofia, religião e visões gerais de toda espécie, sendo-lhes permitido dedicar-se apenas aos assuntos nos quais nenhum erro é possível, como a matemática, ou nos quais não são perigosos, como as línguas, as ciências naturais, a história e assim por diante. E, em geral, as disciplinas a serem estudadas em cada período da vida devem se limitar àquilo que a mente seja capaz de entender perfeitamente naquele período. Infância e juventude constituem a época para a coleta de materiais, para a aquisição de uma familiaridade especial e profunda com as coisas individuais e particulares. Nesses anos é ainda muito cedo para formar visões de grande amplitude; as explicações últimas devem ser deixadas para um momento posterior. Como a capacidade de julgamento pressupõe maturidade e experiência, esta deve ser deixada a si própria; e deve-se cuidar para não antecipar sua atividade inculcando preconceitos, pois isso a paralisará para sempre.

Por outro lado, durante a juventude a memória deve ser especialmente exercitada, pois nessa época é mais vigorosa e mais tenaz. Porém, isso deve ser feito com grande cautela e prudência, visto que as lições bem aprendidas na juventude jamais são esquecidas, e esse solo precioso deve ser cultivado de modo a produzir o máximo possível de frutos. Se observarmos quão profundamente ficam gravados em nossa memória aqueles que conhecemos nos primeiros doze anos de nossas vidas, e como os eventos desses anos, e em geral tudo o que vivenciamos, ouvimos e aprendemos nessa fase, ficam para sempre gravados na memória, torna-se perfeitamente natural a ideia de basear a educação nessa receptividade e tenacidade da mente jovem, guiando-a estrita, metódica e sistematicamente de acordo com tais preceitos e regras. Pois bem, como ao homem só são concedidos alguns anos de juventude, e como a capacidade da memória em geral, e especialmente no indivíduo, é sempre limitada, torna-se imprescindível alimentá-la com o que há de mais essencial e vital em todas as áreas do saber, a despeito de todo o mais. A seleção desse conteúdo deve ser feita, e seus resultados fixados, após a mais madura deliberação das mentes mais capazes e dos mestres de cada área do conhecimento. Tal seleção teria de basear-se num exame cuidadoso a respeito do que é necessário e importante que um homem saiba em geral, e do que é importante e necessário que saiba numa profissão particular ou numa área específica do saber. O conhecimento do primeiro tipo teria de ser classificado, num estilo enciclopédico, em cursos graduados, adaptado ao grau geral de cultura que se espera de um homem na dada circunstância em que se encontra. Começaria com um curso limitado aos pré-requisitos da educação primária, e terminaria com os assuntos abordados pelo pensamento filosófico. A seleção do segundo tipo de conhecimento, entretanto, teria de ser deixada aos verdadeiros mestres de cada área. O sistema como um todo proporcionaria um cânon para a educação intelectual, o qual, naturalmente, teria de ser revisado a cada dez anos. Com tal organização, seria aproveitado ao máximo o poder de memorização da juventude, proporcionando um excelente material à capacidade de julgamento que virá num momento futuro.

§ 375.

A maturidade do conhecimento, isto é, a perfeição que este pode atingir em cada indivíduo, consiste no fato de que foi estabelecida uma conexão precisa entre as ideias abstratas e a capacidade de observação. Isso significa que cada uma de suas ideias abstratas baseia-se, direta ou indiretamente, na observação, e apenas por meio dela um conceito chega a possuir qualquer valor. Também envolve a capacidade de relacionar corretamente cada observação à ideia abstrata correspondente; tal maturidade exige tempo, pois nasce da experiência. O conhecimento que derivamos de nossa própria observação é normalmente distinto do que adquirimos por meio de ideias abstratas; um chega a nós pelo processo natural, o outro por meio da instrução e do que os demais nos dizem, seja isso bom ou ruim. O resultado é que, em nossa juventude, há em geral pouca relação ou correspondência entre nossas ideias abstratas, que são fixadas por meras palavras, e o verdadeiro conhecimento que obtivemos por meio da observação. Apenas gradualmente ambos se aproximam e se corrigem mutuamente; e só existe maturidade no conhecimento depois que ocorre essa união. Tal maturidade ou perfeição do conhecimento é algo bastante independente da outra maior ou menor perfeição das faculdades individuais, algo que se mede não pela conexão entre os dois tipos de conhecimento, mas pelo grau de intensidade que atingem.

§ 376.

O tipo de estudo mais necessário ao homem prático consiste na aquisição de um conhecimento exato e profundo da verdadeira marcha do mundo. Mas, apesar de necessário, esse também é o mais exaustivo de todos os estudos, pois um homem pode atingir uma idade avançada sem ainda haver concluído essa tarefa — ao passo que, no domínio das ciências, já domina os fatos mais importantes ainda em sua juventude. Na aquisição desse conhecimento, as lições mais primárias e mais duras são aprendidas quando ainda se é principiante, isto é, na meninice e na mocidade; mas é frequente que mesmo o homem maduro tenha muito a aprender. Essa dificuldade é em si mesma grande, mas é duplicada pelos romances, que descrevem um estado de coisas e um curso de ações humanas que na verdade não existem. A juventude é crédula, e aceita tais visões da vida, que são assimiladas e se tornam parte de suas mentes. Desse modo, em vez de uma condição negativa de mera ignorância, temos um erro positivo — todo um tecido de noções equivocadas como ponto de partida; algo que posteriormente desvirtuará a escola da experiência, fazendo com que seus ensinamentos se mostrem a nós sob uma luz falsa. Se, antes disso, a juventude não tinha luz alguma para orientá-la, agora é ativamente desorientada pelo diz que diz; e isso acontece com ainda maior frequência quando se trata de raparigas. Por meio de romances, uma visão completamente falsa da vida é inculcada, despertando expectativas que jamais serão satisfeitas. Isso geralmente exerce uma influência funesta pelo resto de suas vidas. Nesse particular, aqueles que, durante sua juventude, não tiveram tempo nem oportunidade para ler romances, como artesãos, mecânicos e congêneres, têm uma clara vantagem. Há alguns poucos romances que são exceções, aos quais a censura acima não se aplica; na verdade, seu efeito é exatamente o oposto. Por exemplo, temos principalmente Gil Blas e as outras obras de Le Sage (ou seus originais espanhóis); temos também O Vigário de Wakefield, e até certo ponto os romances de Walter Scott. Don Quixote pode ser encarado como uma exibição satírica desse erro ao qual me refiro.

segunda-feira, março 01, 2010

OS CINCO DESEJOS

por Rubem Queiroz Cobra

O velho pai, percebendo que estava muito mal e lhe restavam poucas horas, pediu à mãe para chamar os filhos, e reuni-los à sua volta. E lhes disse:

― É difícil para mim deixá-los quando mais precisam de um pai experiente e amigo. Hoje lamento a escolha que fiz de passar a maior parte dos anos da minha vida em viagens e aventuras, e de só muito tarde me casar. Mas tenho fé que ainda haverei de protegê-los. Na verdade, não posso saber o que me espera na outra vida, mas, apesar disso, quero ouvir de cada um qual o seu maior desejo. Quero ir sabendo como ajudá-los, para o caso que de lá eu possa fazer alguma coisa por vocês. Quanto à sua mãe, dela não preciso ouvir o que deseja porque já sei. Trabalharei para que tenha saúde e cuide de vocês ainda por muitos anos.

Retiraram-se, a mãe e os filhos, para a sala contígua, tristes e perplexos.

― Não vejo como atender um pedido assim. Vão vocês primeiro, vou por último – disse um dos filhos.
― Atendam o que seu pai pede. Pode ser que seja sua última vontade – disse a mãe.
― Ele já teve crises piores do que essa, e se recuperou – disse um outro, o mais velho.
― Vou primeiro – disse a menina adolescente. – Ele está esperando e isso vai lhe causar stress e fazê-lo piorar. Que ele olhe por mim para que eu faça um bom casamento, não é difícil de pedir.
― Por ordem alfabética, como sempre fazemos – disse o que havia falado primeiro.

O mais velho aprovou, porém disse:

― Vai o Tacão primeiro, enquanto a gente pensa melhor.

A menina protestou imediatamente:

― Se é para seguir a ordem alfabética, desta vez não será de trás para a frente. Você é que deve ir primeiro, e não o Tacão – disse ela.

O que atendia por aquele apelido estava sentado de cabeça baixa, silencioso até então. Ia dizer alguma coisa, mas a mãe se antecipou:

― Por favor, meninos!

O mais velho abriu a porta do quarto vagarosamente e entrou relutante, mas de rosto grave, e todos sentiram um alívio, vendo que poderiam fazer o mesmo, cada um por sua vez.

*
Poucos meses depois da morte do pai, o mais velho passou em um concurso para um cobiçadíssimo posto no serviço público. Diligente e operoso, cuidava de suas obrigações com satisfação e respeito, e tinha imenso orgulho do cargo que ocupava.

Poucos anos passados a menina, cujo pedido ao pai ela havia dado a conhecer previamente aos irmãos, casou com um diplomata que era todo carinho e atenções, e fez dela a rainha do seu “protocolo” íntimo e particular.

O outro dos irmãos viu realizado seu sonho de ser um excelente médico.

Só a vida do Tacão não mudava. Continuava a sair todas as noites, gostava de festas, avançava devagar nos estudos. Levou essa vida muito singela e despretensiosa, até que um dia os bem-sucedidos irmãos decidiram, como bons irmãos, reunir seus recursos para aplicá-los em conjunto e, um tanto irresolutos mas encorajados pelo cunhado diplomata, perguntaram a Tacão se aceitaria ajudá-los na administração dos negócios. Mesmo não sendo dito, parecia claro que o vigiariam bem de perto, porém com a vantagem de que não precisariam se desviar muito de seus próprios afazeres.

A vida de todos então mudou para um ritmo mais urgente, mais rico. O dinheiro entrou por conta do inesperado tino comercial de Tacão.

*
Uma tarde, os três irmãos bem-sucedidos estavam sentados à sombra de uma bela árvore que o pai havia plantado no gramado perto da piscina, tomando um chá preparado pela mãe, e notaram uma lágrima de saudade no seu semblante triste.

De repente se lembraram de que o pai prometera dar saúde à mãe por muitos anos, e ela de fato estava ali, prestimosa com os filhos, sempre bem disposta, e muito raramente se entristecia, como naquele momento. Silenciaram, enquanto cada um se lembrava do pedido que havia feito ao pai. Os três se deram conta de que, sem que percebessem o que acontecia, haviam sido atendidos cada um no seu desejo.

― Pensando bem – disse o mais velho –, parece que papai de fato nos protegeu, lá de cima, para onde foi... Até o Tacão ele iluminou, para ajudar a gente.

Terminaram o chá em silêncio, observando com afeição o Tacão, que fazia um vigoroso exercício, dando longas e ruidosas braçadas na piscina.
Depois que foram para suas casas, a mãe, retirando a louça, perguntou a Tacão:

― Filho, você não pediu nada a seu pai?... naquela vez que ele chamou cada um de vocês?
― Pedi – disse o filho.
― Então você foi o único que ele não atendeu... Você não foi atendido, verdade?...
― Fui o último a ser atendido, apenas isso. Estou satisfeito com meu trabalho e também com os rendimentos que tenho na administração de nossos negócios.
― Mas... isto... quem fez foram seus irmãos – disse a mãe em dúvida.
― Eu disse a meu pai que meus irmãos não confiavam em mim e isto me magoava muito. O que eu mais queria é que eles passassem a confiar, a me tratar como um igual, a acreditar em mim... A senhora vê? Aconteceu! Eles me confiaram a gestão de todos os seus bens e me tomaram por sócio. – Piscou para a mãe para vê-la sorrir e, sorrindo também, foi dar mais um mergulho na piscina.

terça-feira, janeiro 26, 2010

Conceito do aborto no Islão




O Islão valoriza a vida humana. Isto é expresso claramente no Sagrado Alcorão, quando nos diz que aos olhos de Deus, matar um ser humano é um assunto muito sério (Alcorão 5:32).

O Alcorão ensina que no Dia do Juízo os pais que mataram os seus filhos serão julgados por esse crime, e os seus filhos serão as suas testemunhas de acusação (Alcorão 81:8/9).

As pessoas temem frequentemente que ter mais filhos os torne mais pobres. Respondendo a isso, o Alcorão diz: Não mateis os vossos filhos por medo da pobreza. Nós providenciaremos para vós e para eles (Alcorão 17:31). Mesmo no caso em que já se é pobre, o Alcorão insiste que Deus fornecerá sustento para nós e para os nossos filhos, tanto mais que Deus tornou a vida humana sagrada (Alcorão 6:151).

O direito à vida é uma dádiva de Deus. Nenhum ser humano deve tirar esse direito. A regra geral, por isso, é que o aborto não é permitido no Islão.

No entanto, o Islão é uma religião muito prática. Inclui princípios para lidar com casos excepcionais. Um desses princípios é que, quando a gravidez ameaça a vida da mãe, pode-se realizar o aborto. Embora as vidas da mãe e da criança sejam ambas sagradas, neste caso é melhor salvar a vida principal, a vida da mãe. Mesmo neste caso, será melhor se o aborto for feito antes da alma entrar no feto.

O Islão não permite o aborto em outros casos. Mulheres que foram vítimas de violação ou incesto naturalmente que merecem simpatia e ajuda. Mas uma criança concebida desta maneira infeliz tem direito a viver. Claro que isto coloca um fardo indesejável na mãe, mas matar a criança não é a solução certa.

Para entender melhor este ponto, suponham que alguém vê as camadas mais pobres da sociedade como um fardo indesejável para os ricos. Seria então correcto matar todos os pobres? Claro que não. Então porque é que alguém pode decidir que uma pessoa seja morta só porque é um fardo indesejável? A sociedade como um todo deve ajudar a mãe e aliviá-la o mais possível. Mas a criança não deve ser morta. Mais ainda, o facto de que tais casos acontecem é uma indicação de que as pessoas necessitam desesperadamente de alimento espiritual. Elas necessitam dos ensinamentos espirituais que as ajudarão a afastar a sua mente do adultério, violação e incesto. As pessoas necessitam de Deus. Podereis ajudar alguém a voltar-se para Deus?

Yiossuf Adamgy. Lisboa, Janeiro de 2007

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Carta a Meneceu

Carta a Meneceu
Epicuro.  Tradução de Desidério Murcho.

“ Epicuro a Meneceu, saudações".
Que nenhum jovem adie o estudo da filosofia, e que nenhum velho se canse dela; pois nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para cuidar do bem-estar da alma. O homem que diz que o tempo para este estudo ainda não chegou ou já passou é como o homem que diz que é demasiado cedo ou demasiado tarde para a felicidade. Logo, tanto o jovem como o velho devem estudar filosofia, o primeiro para que à medida que envelhece possa mesmo assim manter a felicidade da juventude nas suas memórias agradáveis do passado, o último para que apesar de ser velho possa ao mesmo tempo ser jovem em virtude da sua intrepidez perante o futuro. Temos, portanto de estudar o meio de assegurar a felicidade, visto que se a tivermos, temos tudo, mas se não a tivermos, fazemos tudo para obtê-la.
Pratica e estuda sem cessar aquilo que estava sempre a ensinar-te, tendo a certeza de que estes são os primeiros princípios da vida boa. Depois de aceitar deus como o ser imortal e bem aventurado descrito pela opinião popular, nada mais lhe atribuas que seja estranho à sua imortalidade ou à sua bem-aventurança, mas antes acredita acerca dele seja o que for que possa sustentar a sua imortalidade bem-aventurada. Os deuses existem realmente, pois a nossa percepção deles é clara; mas não são como a multidão os imagina, pois a maior parte dos homens não retêm a imagem dos deuses que primeiro recebem. Não é o homem que destrói os deuses da crença popular que é ímpio, mas antes quem descreve os deuses nos termos aceites pela multidão. Pois as opiniões da multidão sobre os deuses não são percepções, mas antes falsas suposições. De acordo com estas superstições populares, os deuses enviam grandes males aos perversos, e grandes bem-aventuranças aos íntegros, pois, sendo sempre favoráveis às suas próprias virtudes, aprovam quem é como eles, encarando como estranho tudo o que é diferente.
Habitua-te à crença de que a morte não nos diz respeito, dado que todo o mal e todo o bem assentam na sensação e a sensação acaba com a morte. Logo, a crença verdadeira de que a morte nada é para nós faz uma vida mortal feliz, não ao acrescentar-lhe um tempo infinito, mas ao eliminar o desejo de imortalidade.
Pois não há razão para que o homem que tem plena certeza de que nada há a recear na morte encontre algo que recear na vida. Assim, também é tolo quem diz que receia a morte não por ser dolorosa quando chegar, mas por ser dolorosa a sua antecipação; pois o que não é um peso quando está presente é doloroso sem razão quando é antecipado. A morte, o mais temido dos males, não nos diz consequentemente respeito; pois enquanto existimos a morte não está presente, e quando a morte está presente nós já não existimos. Nada é, portanto nem para os vivos nem para os mortos visto que não está presente nos vivos, e os mortos já não são.
Mas os homens em geral por vezes fogem da morte como o maior dos males, por vezes almeja-na como um alívio para os males da vida. O homem sábio nem renuncia à vida nem receia o seu fim; pois a vida não o ofende, nem supõe que não viver é de algum modo um mal. Tal como não escolhe a comida da qual há maior quantidade, mas a que é mais agradável, também não procura a satisfação da vida mais longa, mas sim a da mais feliz.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem é tolo não apenas porque a vida é desejável, mas também porque a arte de viver bem e a arte de morrer bem são uma só. Contudo, muito pior é quem diz que é bom não ter nascido, mas, uma vez nascido, que o melhor é passar depressa pelos portões do Hades.
Se um homem diz isto e realmente acredita nisto, por que razão não se retira da vida? Certamente que os meios estão à mão se for realmente essa a sua convicção. Se o diz a zombar, é visto como um tolo entre quem não aceita o seu ensinamento.
Lembra-te que o futuro nem é nosso nem é completamente não nosso, de modo que nem podemos contar que virá de certeza nem podemos abandonar a esperança nele com a certeza de que não virá.
Tens de considerar que alguns desejos são naturais, outros vãos, e dos que são naturais alguns são necessários e outros apenas naturais. Dos desejos naturais, alguns são necessários para a felicidade, alguns para o bem-estar do corpo, alguns para a própria vida. O homem que tem um conhecimento perfeito disto saberá como fazer toda a sua escolha ou rejeição tender para ganhar saúde do corpo e paz de espírito, dado que este é o fim último da vida bem-aventurada. Pois para alcançar este fim, nomeadamente a libertação da dor e do medo, faz tudo. Quando se atinge esta condição, toda a tempestade da alma sossega, dado que a criatura nada mais precisa fazer para procurar algo que lhe falte, nem de procurar qualquer outra coisa para completar o bem-estar da alma e do corpo. Pois só sentimos a falta de prazer quando sentimos dor com a sua ausência; mas quando não sentimos dor já não precisamos de prazer. Por esta razão, dizemos que o prazer é o princípio e o fim da vida bem-aventurada. Reconhecemos o prazer como o bem primeiro e natural; partindo do prazer, aceitamos ou rejeitamos; e regressamos a isto ao ajuizar toda a coisa boa, usando este sentimento de prazer como o nosso guia.
Precisamente porque o prazer é o bem principal e natural, não escolhemos todo o prazer, mas por vezes abstemo-nos de prazeres se estes forem cancelados pelas privações que se seguem; e consideramos muitas dores melhores do que prazeres quando um maior prazer virá até nós depois de termos sofrido dores demoradas. Todo o prazer é um bem dado ter uma natureza congênere da nossa; contudo, nem todo o prazer deve ser escolhido. De igual modo, toda a dor é um mal, contudo nem toda a dor é de natureza a ser evitada em todas as ocasiões. Pesando e olhando para as vantagens e desvantagens, é apropriado decidir todas estas coisas; pois em certas circunstâncias tratamos o bem como mal e, igualmente, o mal como bem.
Encaramos a auto-suficiência como um grande bem, não para que possamos desfrutar apenas de poucas coisas, mas para que, se não tivermos muitas, nos possamos satisfazer com as poucas, estando firmemente persuadidos de que quem retira o maior prazer do luxo é quem o encara como menos preciso, e que tudo o que é natural se obtém facilmente, ao passo que os prazeres vãos são difíceis de obter. Na verdade, temperos simples dão um prazer igual ao dos banquetes pródigos quando a dor devida à necessidade for removida; e pão e água dão o máximo prazer quando uma pessoa necessitada os consome. Estar acostumado à vida simples e básica conduz à saúde e faz um homem ficar pronto a enfrentar as tarefas necessárias da vida. Prepara-nos também melhor para usufruir o luxo se por vezes tivermos a sorte de encontrá-lo, e faz-nos intrépidos face à fortuna.
Quando dizemos que o prazer é o fim, não queremos dizer o prazer do extravagante ou o que depende da satisfação física — como pensam algumas pessoas que não compreendem os nossos ensinamentos, discordam deles ou os interpretam malevolamente — mas por prazer queremos dizer o estado em que o corpo se libertou da dor e a mente da ansiedade. Nem beber e dançar continuamente, nem o amor sexual, nem a fruição de peixe, ou seja, o que for que a mesa luxuosa oferece gera a vida agradável; ao invés, esta é produzida pela razão que é sóbria, que examina o motivo de toda a escolha e rejeição, e que afasta todas aquelas opiniões através das quais a mente fica dominada pelo maior tumulto.
De tudo isto o bem inicial e principal é a prudência. Por esta razão, a prudência é mais preciosa do que a própria filosofia. Todas as outras virtudes nascem dela. Ensina-nos que não é possível viver agradavelmente sem ao mesmo tempo viver prudentemente, nobremente e justamente, nem viver prudentemente, nobremente e justamente sem viver agradavelmente; pois as virtudes cresceram em união íntima com a vida agradável, e a vida agradável não pode ser separada das virtudes.
Quem pensas então que é superior ao homem prudente, que tem opiniões reverentes sobre os deuses, que não tem qualquer medo da morte, que descobriu qual é o maior bem da vida e que compreende que o mais alto bem é fácil de alcançar e manter e que o extremo do mal tem limites no tempo ou no sofrimento, e que se ri do que algumas pessoas inventaram como a regente de todas as coisas, a Necessidade? Ele pensa que o poder de decisão principal nos cabe a nós, apesar de algumas coisas surgirem por necessidade, algumas por acaso e algumas pelas nossas próprias vontades; pois ele vê que a necessidade é irresponsável e o acaso incerto, mas que as nossas ações não estão sujeitas a qualquer poder. É por esta razão que as nossas ações merecem louvor ou censura. Seria melhor aceitar o mito sobre os deuses do que ser um escravo do determinismo dos físicos; pois o mito sugere uma esperança de graça através das honras concedidas aos deuses, mas a necessidade do determinismo é inescapável. Visto que o homem prudente não encara, como muitos, o acaso como um deus (pois os deuses nada fazem de maneira desordenada) ou como uma causa instável de todas as coisas, acredita que o acaso não dá ao homem o bem e o mal para fazer a sua vida feliz ou miserável, mas que fornece oportunidades para grandes bens ou males. Finalmente, ele pensa que é melhor encontrar o infortúnio quando se age com razão do que calhar a ter boa fortuna ao agir insensatamente; pois é melhor não ocorrer o que foi bem planeado nas nossas ações do que ser bem-sucedido por acaso o que foi mal planeado.
Medita nestes preceitos e noutros como estes, de dia e de noite, sozinho ou com um amigo da mesma opinião. ‘“Então nunca terás receio, de dia ou de noite; mas viverás como um deus entre os homens; pois a vida no seio de bem-aventuranças imortais não é de modo algum como a vida de um mero mortal.”


Fonte: http://criticanarede.com/html/meneceu.html