domingo, novembro 08, 2009

Melancolia Filosófica

David Hume
Melancolia Filosófica  

Mas antes de me lançar nessas imensas profundezas da filosofia que se apresentam diante de mim, vejo-me inclinado a deter-me um instante em minha presente situação, e a avaliar essa viagem a que me propus fazer e que sem dúvida requer o máximo esforço e arte para ser concluída com sucesso. Sinto-me como um homem que, tendo encalhado em muitos recifes e tendo escapado com grande dificuldade de um naufrágio em um pequeno estreito, tem ainda a temeridade de retornar ao mar no mesmo navio avariado e castigado pelo mau tempo, e ainda carrega a sua ambição tão longe a ponto de percorrer o globo nessas circunstâncias desvantajosas. Minha memória dos erros e da perplexidade do passado tornaram-me desconfiado do futuro. A condição debilitada, a fraqueza e a desordem das faculdades que devo utilizar em minhas investigações aumentam a minha apreensão. E a possibilidade de emendar e corrigir tais faculdades leva-me quase ao desespero, e quase a preferir perecer nas pedras em que me encontro no momento, do que aventurar-me na imensidão do alto mar. Esta súbita visão de perigo em enche de melancolia; e como ocorre com essa paixão, dentre todas as demais, perder-se em si mesma, eu não posso deixar de alimentar o meu desespero com todas essas reflexões desanimadoras que o presente assunto me oferece com tamanha abundância. Sinto-me assustado e confuso com esta situação desesperante em que me encontro em minha filosofia, e imagino a mim mesmo como um monstro estranho e grosseiro que, não sendo capaz de se misturar e se unir em sociedade, foi expulso do convívio humano, totalmente abandonado e deixado inconsolável. De bom grado misturar-me-ia à multidão em busca de proteção e cordialidade, mas sendo possuidor de tal deformidade, não posso ousar misturar-me. Convido a outros que se unam a mim com o objetivo de constituir uma sociedade à parte, mas ninguém me atende. Todos se opõem à distância e temem a tormenta que me golpeia de todos os lados. Expus-me à inimizade de todos os metafísicos, lógicos, matemáticos e mesmo teólogos; devo alegrar-me com os insultos que tenho de suportar? Declarei a minha desaprovação de seus sistemas; devo surpreender-me por eles expressarem seu ódio de minha pessoa? Quando contemplo todas as disputas, contradições, calúnia e difamação; quando dirijo a minha atenção para o meu interior, não encontro nada senão dúvida e ignorância. Todo o mundo me opõe e me contradiz; tal é a debilidade que experimento que todas as minhas opiniões se desfazem e caem por si mesmas quando não sustentadas pela aprovação dos outros. Cada passo que dou com vacilação e cada nova reflexão me faz temer um erro ou um absurdo em meu raciocínio. Ora, com que confiança posso aventurar-me a um empreendimento tão audaz quando, além das infinitas debilidades que me são peculiares, descubro tantas outras que são comuns à natureza humana? Posso estar seguro de que ao abandonar todas as opiniões estabelecidas chegarei à verdade? E por qual critério devo distingui-la se a fortuna guia por fim os meus passos? Após o mais preciso e exato dos meus raciocínios, não posso dar uma razão do porquê deva eu assentir a ele e não experimento mais do que uma forte inclinação a considerar os objetos fortemente do ponto de vista a partir do qual se me apresentam.


(...)


Nada é mais perigoso à razão do que os vôos da imaginação... Mas, por um lado, se a consideração dessas instâncias me leva a rejeitar todas as sugestões triviais da imaginação e a aderir ao entendimento...; mesma essa rejeição, se executada com sucesso, seria perigosa... . ... o entendimento, quando atua sozinho, subverte-se a si mesmo inteiramente, e não deixa o menor grau de evidência em qualquer proposição, seja em filosofia, seja na vida comum... Será que temos, então, de estabelecer como máxima geral que nenhum raciocínio elaborado ou refinado deva ser aceito?... Por tal meio eliminamos totalmente toda ciência e toda filosofia... Se aceitamos tal princípio..., chegamos aos maiores absurdos. Se o recusamos em favor desses raciocínios, subvertemos inteiramente o entendimento humano. Reflexões muito refinadas têm pouco ou nenhuma influência em nós; e no entanto não podemos estabelecer como regra que elas não tenham qualquer influência...


Ocorre que, felizmente, uma vez que a razão é incapaz de dissipar essas nuvens, a própria natureza basta para tal propósito, e me cura dessa melancolia e desse delírio filosófico, seja relaxando essa inclinação da mente, seja por alguma... impressão vivaz dos sentidos, que ofusca todas as quimeras. Eu janto, jogo gamão, converso e me divirto com meus amigos; e quando, após três ou quatro horas de divertimento, eu retorno a essas especulações, elas parecem tão frias... e ridículas...


Assim, vejo-me absoluta e necessariamente inclinado a viver, e a conversar, e a agir como as outras pessoas nos seus afazeres diários... Estou pronto a lançar todos os meus livros e papéis ao fogo, e a jamais renunciar aos prazeres da vida por causa do raciocínio e da filosofia.


(...)


Quando então me canso de tanto divertimento e companhia, e tendo sido levado à meditar em meu quarto, ou em um passeio solitário ao longo do rio, sinto a minha mente completamente absorta em si mesma, e me vejo naturalmente inclinado a conduzir a minha visão a todos esses assuntos sobre os quais encontrei tanta disputa no curso da minha leitura e conversação. Não posso deixar de ter curiosidade acerca dos princípios morais do bem e do mal, a natureza e o fundamento dos governos, e a causa dessas tantas paixões e inclinações que atuam em mim e me governam. Me sinto desconfortável em pensar que aprovo um objeto e desaprovo outro; que chamo algo de belo e algo de feio; que decido a respeito da verdade e da falsidade... sem saber com base em quais princípios eu procedo... Sinto uma ambição crescente em mim de contribuir para a instrução da humanidade... Esses sentimentos surgem naturalmente em minha presente disposição... Sinto que deva ser um perdedor no que concerne ao prazer; e essa é a origem da minha filosofia.


(excertos do Treatise of Human Nature de David Hume, Conclusão do Livro I)


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